SENTIDO  DO  NOVO  CÓDIGO  CIVIL

MIGUEL REALE

 

                   Quando entrar em vigor o novo Código Civil, a 10 de janeiro de 2.003, perceber-se-á logo a diferença entre o código atual, elaborado para um País predominantemente rural, e o que foi projetado para uma sociedade, na qual prevalece o sentido da vida urbana. Haverá uma passagem do individualismo e do formalismo do primeiro para o sentido socializante do segundo, mais atento às mutações sociais, numa composição equitativa de liberdade e igualdade.

                   Além disso, é superado o apego a soluções estritamente jurídicas, reconhecendo-se o papel que na sociedade contemporânea voltam a desempenhar os valores éticos, a fim de que possa haver real concreção jurídica. Socialidade e eticidade condicionam os preceitos do novo Código Civil, atendendo-se às exigências de boa-fé e probidade em um ordenamento constituído por normas abertas, suscetíveis de permanente atualização.

                   Com esse espírito, o novo Código mantém a Parte Geral, contribuição imortal de Teixeira de Freitas, dedicando capítulo especial aos direitos da personalidade, sendo dado relevo mais aos negócios  jurídicos do que aos atos jurídicos em geral.

                   O primeiro Livro da Parte Especial se refere ao Direito das Obrigações, sendo disciplinadas unificadamente as civis e as comerciais, fato que, de resto, praticamente já ocorre atualmente, devido ao obsoletismo do Código Comercial de 1850. Esse Livro é enriquecido com novos modelos de contratos-tipo, reconhecendo-se sempre a sua função social.

                   O 2º Livro regra o Direito de Empresa, com especial atenção dispensada às sociedades empresárias, notadamente a de quotas de responsabilidade limitada, ainda disciplinada por superada lei de 1919. Além da atualização das disposições, é feita necessária distinção entre pequena e média empresa, dotadas somente de diretoria, e as maiores que podem se organizar nos moldes das sociedades anônimas. É importante realçar que é previsto o emprego de processos eletrônicos na escrituração mercantil, superada uma série de requisitos formais incompatíveis com o dinamismo da livre iniciativa.

                   Na parte relativa ao Direito das Coisas, o princípio de socialidade vem dar novo sentido às suas disposições, como se dá com a posse, que quando acompanhada de trabalho criador, implica em substancial redução do prazo de usucapião, em consonância com a função social da propriedade consagrada pela Constituição de 1988.

                   Tanto no Senado como na Câmara foi imenso o empenho no sentido de ajustar o Direito de Família à Carta Magna, visto ter esta estabelecido a igualdade absoluta entre os cônjuges e entre os filhos, extinguindo o pátrio poder, que passou a ser “poder familiar”, conforme denominação por mim sugerida.

                   Merece especial menção a divisão feita entre Direito Pessoal e Direito Patrimonial da família, o que veio a dar mais clareza e precisão aos textos. Não menor foi o cuidado visando a corrigir as falhas da legislação sobre “união estável”, estruturada em consonância com a Constituição que bem a distingue do concubinato.

                   É claro que as alterações operadas no Direito de Família não podiam deixar de repercutir no campo do Direito das Sucessões, inclusive para tornar o cônjuge também herdeiro, em virtude da substituição do regime legal da comunhão universal de bens, no casamento, pelo da comunhão parcial.

                   Como se vê, não obstante a longa tramitação de 26 anos no Congresso Nacional, houve sempre contínua atualização do Projeto, graças às numerosas emendas corretivas, substitutivas ou aditivas aprovadas tanto no Senado como na Câmara, os quais, finalmente, houveram por bem constituir uma “Comissão Especial do Código Civil”, que, com base em oportuna reforma do Regimento Geral do Congresso, permitiu que se fosse  além da apreciação das emendas do Senado, tendo sido aprovados dispositivos que atenderam plenamente às questões  ainda pendentes..

                   Cabe-me assinalar que membros remanescentes da antiga “Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil” continuaram a colaborar com o Poder Legislativo, como foi o caso do ilustre Ministro José Carlos Moreira Alves e o meu. No que me concerne, fiz várias sugestões ao relator geral da matéria no Senado Federal, o ilustre senador Josaphat Marinho, que as acolheu, sendo alteradas, por exemplo, as normas pertinentes  ao testamento particular e à sociedade de responsabilidade limitada, o que demonstra que, até o último momento, houve a preocupação de se atualizar a nova Lei Civil.

                   Não houve, em suma, oportunidade que se perdesse para aperfeiçoamento do Projeto, tal como se deu ao ser aprovado o Art. 1.597 que, no tocante à presunção de filiação, leva em conta três modalidades de inseminação artificial, o que demonstra, também, sob esse ângulo, a modernidade do novo Código Civil.

                   É claro que não pretendo apresentá-lo como uma obra perfeita, sendo natural que, em um ou outro ponto, possa ele ser objeto de revisão ou complemento, neste longo prazo de vacatio legis, mas desde que se trate de questões substanciais, e não de pontos de vistas discutíveis, ainda não devidamente amadurecidos no plano teórico e prático.

                   O que importa é verificar que o novo Código Civil vem atender à sociedade brasileira, no tocante às suas aspirações e necessidades essenciais. Agora que já se possuem publicações que põem em cotejo os artigos do Código de 1916 com os do Código de 2.002, será fácil avaliar o que este representa em nosso desenvolvimento cultural.

                   É indispensável, porém, ajustar os processos hermenêuticos aos parâmetros da nova codificação, pois como nos ensina o insígne filósofo Hans Georg Gadamer – falecido recentemente aos 102 anos – a hermenêutica não se reduz a mero conjunto de normas interpretativas, porque é da essência mesma da realidade cultural que se quer compreender. Nada seria mais prejudicial do que interpretar o novo Código Civil com a mentalidade formalista e abstrata que predominou na compreensão da codificação por ele substituída.                                                                                                         

                                                                           30/03/02